quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Esparadrapo

Foi igual a arrancar um esparadrapo que Melissa deixou Marcos. 

- Estou indo embora.

Sem espaço para brigas, discussões de relação, mimimis e coisas do tipo. Ele também não era do tipo de mendigar atenção.

- Quer ir, vá.

Ele sabia que essa hora ia chegar, mas isso não o impediu de de sentir a puxada do esparadrapo. Muito menos de sobrar cola na pele. E essa cola não desgruda jamais, vai grudando com outras, às vezes solta um pouco, mas sempre está meio pegajosa. Só sai com éter. E quem tem éter em casa?

Marcos não tem éter em casa, então deixou a cola assim mesmo. Além disso, se você usar éter, corre o risco de ficar anestesiado e se esquecer dos momentos bons. Algumas pessoas não hesitariam em esquecer a parte ruim da história. Mas esta infelizmente está amarrada à boa, e esse era um risco que Marcos não gostava de correr, pois achava que a linha do tempo é uma reta só, e quanto mais buracos tiver nessa reta, menos sentido vão fazer as coisas no futuro. 

Marcos ficou sentindo sua pele ardendo ainda por um tempo, meio avermelhada. É que a falta que ele sentiu o surpreendeu. Então ele foi à geladeira e se serviu com uma cerveja. Por alguns absurdamente gelados momentos, essa falta foi preenchida. Mesmo sabendo que essa falta nem cerveja, nem Melissa, nem qualquer outra coisa vai suprir. Somos todos destinados à incompletude.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

À princípio era o verbo

Eu queria construir um mundo feito apenas de palavras. Em cada lacuna, uma palavra. Em cada amor perdido, um poema. Como sentir qualquer falta, se vocábulos existem aos montes? Se um não fosse suficiente, tentaria outro e mais outro. E outro. As pessoas ligariam as palavras, e brincariam de poesia. As crianças pulariam de trampolim numa piscina de palavras e sairiam molhadas de cultura. Cada raio solar faria um sentido. Cada vento sopraria uma ideia. Já pensou que louco? A sorte é que esse mundo já existe.

Chega de saudade

Tom sabia que isso ia acontecer mais cedo ou mais tarde. Ele sabia que depois de uma chegada vem sempre uma partida, e que a vida é uma grande ilusão. Mas ele nunca se iludiu, não achou que Dindi era o amor de sua vida, não podia contar com isso. É que Dindi tinha uma doçura encantadora, um abraço que aquecia seu coração tão resfriado pelas adversidades da vida.

No entanto aquela sensação de que alguma coisa extraordinária poderia acontecer não o abandonava. Ela era seu amor Bossa Nova: mansinho, feito uma brisa que diz “é impossível ser feliz sozinho”. E quando a luz dos olhos dela encontrava com a luz dos olhos dele,

 “Ah Dindi, se soubesses como machuca, não amaria mais ninguém.”

Os dois não se viam sempre. Havia uma distância que poderíamos medir em quilômetros, que não bastaria para calcular quão longe estavam um do outro. Essa distância era mais bem medida em dias. Dias que levariam para correr (literalmente) todo o percurso entre suas casas. Provavelmente se encontrariam em alguma praia deserta no meio do caminho. Passariam uma tarde em Itapoã, falando de amor.

E o resto, mar. Tudo que eu não saberia nunca contar.

Eles só se encontravam de passagem, na cidade, no cais, na eternidade. Mas o coração dele saltava toda vez que, sem menos esperar, ela vinha, mesmo que por ínfimos e calorosos minutinhos. Com seu violão, musiquinhas, palavrinhas bonitinhas e tantos e tantos beijinhos, mais do que peixinhos a nadar no mar.

Mas ela sempre tinha aquele mar no olhar. Como quem a qualquer momento se vai. Tom pensava “vai ver, tem que ser”, e vivia o dia, sem medo de no final dele só sobrarem lembranças. Ele não era ninguém de ir em conversa de esquecer a beleza de um amor que passou. O importante era viver, e passar mais uma vez, só pra garantir.

“Ai, Dindi, se soubesses o bem que eu te quero...”

Até que um dia Dindi disse que ia passar por ali. Como sempre, Tom ficou tentando conter a aflição. Seriam abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim. Ele não, dormiu, não parou. Mas Dindi passou direto.

Que insensatez, que coração mais sem cuidado...

Não era uma grande surpresa, ele sempre soube que ela partiria, mas os momentos felizes já tinham deixado raízes no seu penar.

Com o tempo ele percebeu que ela tinha ido sem volta. Então ele resolveu aceitar e seguir adiante. Sei lá, a vida tem sempre razão.

“Mas, se ela voltar...
Se ela voltar, que coisa linda...

Que coisa louca.”

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Só mais um pedacinho

Se o amor fosse uma comida, o amor seria uma paçoca. Você não tem pretensão nenhuma de comer paçoca. Você quer cheesecake, mas só tem paçoca.  Sei lá, amendoim é gostoso e tudo, mas paçoca deve ser enjoativa. Mas você fica com vontade de experimentar. No início você pensa "nossa, que delícia!". Você não sabe se aquilo é doce ou é salgado, e essa dúvida vai te deixando cada vez mais envolvido na degustação. E vai comendo aos pouquinhos pra não enjoar. Mas percebe que não tem como evitar. Quando vê, está por aqui de paçoca, até que você para, toma uma água, pensa um pouco, diz que nunca mais vai comer paçoca, de tão enjoativo que é. Não entende como as pessoas gostam disso. Mas daí a cinco minutos você pensa, “ah não, acho que vou comer só mais um pedacinho”. E começa tudo de novo.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

A questão dos peixes

Marina sempre ficou imaginando o grande amor da sua vida. “Haverá de me atrair”. Não se importava com beleza óbvia, mas a beleza escondida nos defeitinhos bobos, um lábio meio torto, um nariz proeminente, um bigode que mexe quando o cara fala, o jeito de falar, ou qualquer característica aleatoriamente esquisita que fizesse daquela pessoa unicamente atraente. Mas o mais importante de tudo: pernas. Pernas foram feitas para se encaixar. As pessoas dizem que o primeiro beijo é um momento crucial para saber se há química. Mas Marina não acha suficiente. Ela precisa dormir com a pessoa e sentir que passaria o resto da vida confundindo suas pernas com as da pessoa, com sua licença, Chico Buarque. Ela precisa saber que tem um lugar pra sua cabeça no ombro (macio, diga-se de passagem, tem que ser) dessa pessoa, enquanto as pernas se entrelaçam firmemente. Enfim, fora isso, toda aquela perfumaria que no final das contas é sempre considerada: engraçado, carinhoso, fiel, educado, blá blá blá.

Vamos facilitar a vida dela: no mundo inteiro há 70 milhões de pessoas que poderiam ser facilmente identificadas como sua alma gêmea, uma coisa que Marina não acredita. 70 milhões é muita gente. Mas é muito mundo também. Considerando que há 5 continentes e sem considerar muito suas densidades populacionais (por questão de preguiça mesmo), estima-se que em seu continente provavelmente haveria 14 milhões de pessoas compatíveis, digamos assim. 7 milhões na América do Sul. Cerca de 5 milhões no Brasil. Tudo bem, seu país é grande, e tem mais ou menos umas 5 mil cidades. Bom, esse cálculo sim, que seria loucura, devido a variação populacional enorme de uma pra outra, mas só por curiosidade, e porque não queremos parar por aqui, chega-se a conclusão que na cidade em que Marina mora deve haver mil pessoas que poderiam aquecer seu coração.

Vamos considerar que metade dessas pessoas são feias. Não feias e ponto final, mas não atraem e nem despertam a atenção de Marina. Como já falei, Marina não se importa com a beleza escancarada, mas com algo de sedutor por trás (ou na frente). Claro que num mundo ideal, isso não importaria. Mas esse é um mundo ideal? Se fosse, não existiriam baratas. Mas voltemos, 500 peixes por aí dando sopa no oceano. Bem, não tão fácil assim, metade desses peixes estão comprometidos. Com pessoas que já são os amores das suas respectivas vidas? Sabe-se lá. Talvez sim, talvez não. Mas o que importa é que 250 pessoas estão aí, Marina. Se você mora numa cidade de 5 milhões de pessoas, você tem uma chance de 1 para 20 mil de achar uma de suas almas gêmeas (cálculo baseado no que eu quis mesmo). Na sua cidade.

Ainda bem que existem outras cidades.