domingo, 29 de julho de 2012

O que não faz sentido


O sentimento é por natureza irracional. Tem vontade própria, e é insistente: chega antes da razão, e vai embora depois. A razão pensa, pondera o que é melhor, e deixa uma carta explicando tudo minuciosamente. Ele lê, chora e rasga a carta. Finge que nem leu.

A razão pergunta, indignada:

- Por que você não faz o que eu permito? Quer se machucar?

Mas o sentimento responde:

- Se eu fizesse o que você deixa, eu teria razão. E se eu tivesse razão, seria pensado e não sentido, o que não faria sentido. E afinal, qual seria a graça se você permitisse?

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Das vantagens de ser besta


Sem querer confrontar Clarice Lispector, ser bobo tem suas vantagens, mas bom mesmo é ser besta. O besta nada mais é do que um bobo. É um tipo de bobo. Tem todas as características do bobo, que como Clarice bem disse: não é um burro. O besta não precisa de muito para se divertir. Para ele as maiores alegrias estão nas pequenas coisas. 

O besta na maioria das vezes é distraído, consegue passar horas olhando para o tempo e ele só se dá conta que alguém chamou por ele quando a pessoa já está gritando seu nome. O besta também cai no chão com facilidade, e não hesita em rir de si mesmo quando isso acontece. Ele até prefere que caso presenciem o fato, riam junto com ele. 

O besta se dá bem com cachorros e crianças. Os cachorros ganham vozes perto do besta. Isso porque ele não pode ver um cachorro que começa a “dublar” seus pensamentos. O besta conversa com as crianças como se elas fossem adultas. E elas conversam com ele como se ele fosse criança.

O besta imagina as situações mais absurdas e fica rindo sozinho, sem se preocupar com os olhares repressores. O besta ri dos olhares repressores. O besta ri de si mesmo. O besta ri várias vezes da mesma piada e quando alguém pergunta se conhece tal piada, até finge que nunca a ouviu, só para ouvir de novo e poder rir mais. O besta até prefere as piadas “sem graça”, não por dificuldade de entender as piadas e sim por dó da piada, porque ninguém ri dela. O besta geralmente possui uma risada engraçada. As pessoas costumam se contagiar quando ele começa a rir.

Mas também há desvantagens. O besta não consegue segurar seu riso. O que pode o colocar em situações constrangedoras. Ainda mais porque o besta possui dificuldades em se manter sério em situações em que a sociedade exige seriedade.

Aviso: não confundir besta com abestalhado. O besta não ri de tudo. A risada do besta se dá pela linguagem, pela graciosidade, não só por ver graça em tudo sem critérios.

O besta chora de rir e se emociona com facilidade. Mas ele não está feliz sempre, quando está triste as pessoas percebem logo. Fingir que está feliz não é uma coisa que o besta consegue fazer muito bem. O besta não segura o choro, quando ele chora é de soluçar.

O besta é lúdico, não infantil. E como ri! Só o besta é capaz de excesso de risada. E só o riso faz o besta.

domingo, 15 de julho de 2012

O momento


Não estou pronta para dizer adeus. Até mais, então. Não sei se serei a mesma até lá. Esse brilho que agora é intenso pode ser apenas uma tênue luz quando chegar o momento. Não acredito em destino. Não acredito em alma gêmea. Mas acredito no momento. O momento é o dono da vida. O momento faz com que situações aleatórias sejam interpretadas como destino, e pessoas compatíveis como almas gêmeas. Mas é difícil não interpretar dessa forma, mesmo sabendo que há sete bilhões de pessoas no mundo. Isso implica em haver pessoas compatíveis por todos os lados. Mas momentos compatíveis não, por isso todo esse misticismo por trás deles. Momentos compatíveis são raros. Porém cada momento é individual e único. E momentos devem ser respeitados.

Não gosto de joguinhos. Não tente me interpretar, pois nada do que faço é esperando alguma reação. Tudo em mim é verdadeiro, até mesmo a minha forma de não agir. Fiz tudo que estava ao meu alcance, e vivi, cada instante. Agora é com você. Não por orgulho, nem por ser sua vez no jogo. Não há jogos. Apenas por questão de respeito. Você não merece que eu despeje todo meu sentimento sobre você, é muita responsabilidade. Não, isso é só meu. Deixa que eu cuide disso. Não é que eu tenha medo da queda. Muito pelo contrário, já dei minha cara a tapa há muito tempo. Mas não sei do seu momento. Eu só sei do meu, e quando ele chegou me joguei sem hesitar. Se eu soubesse que o seu momento é igual ao meu, eu estaria aí, e não aqui olhando para o relógio. Mas enquanto não sei, espero.

Não quero que esse momento acabe. Quero que ele ainda esteja aqui quando você chegar, se você chegar. Mas não posso garantir nada. Não sou dona do momento, ele que é meu dono. E o que ele manda eu faço. Já não sei se estou tentando fazer com que o momento espere um pouco mais, ou relutantemente querendo acabar de vez com ele por não suportar a espera. Mas é inútil, quando ele quer ele é avassalador. E ele não quer dizer adeus.

Até mais.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Manias comprometedoras


Tenho o estranho costume de observar os motoristas dos carros ao lado, quando o trânsito está parado. A inquietude é quase geral, mas incrível mesmo é o fato de as pessoas não se lembrarem de que podem estar sendo observadas quando estão em seus carros nos engarrafamentos. Eu mesma estou com a agenda cheia de tanto show que tenho realizado no meu carro. O playback rola solto, e videoclipes, já tenho vários gravados! Vez ou outra alguns passageiros de outros veículos ficam meio chocados com as performances. E quando me dou conta que estou sendo observada caio na gargalhada.

Mas isso não é nada perto do que eu constatei hoje: ainda há pouco passei uma hora no trânsito voltando para casa e descobri que colocar o dedo no nariz é quase um fenômeno em massa. E é contagioso! É só um começar que se dá início a um efeito dominó de cutucadas nasais. E quanto mais parado o trânsito pior. Será que o tédio tem algo a ver com a vontade de colocar dedos em orifícios corporais? E os orifícios não param nas narinas! Algumas pessoas são mais ousadas e ainda se atrevem a saborear o produto interno bruto...

Fiquei imaginando se houvesse uma infração de trânsito por colocar o dedo no nariz, já que imaginar situações absurdas também é um costume esquisito que tenho. Bem, teoricamente você não pode dirigir com distrações e brincar com bolinha de meleca poderia muito bem se enquadrar nessa categoria. As pessoas seriam paradas nas blitz, e receberiam multas por serem flagradas com a boca na botija (ou seria o dedo?), tentando se explicar: “mas seu guarda, por favor, essa era enorme, eu mal estava conseguindo respirar!”. Mas o guarda diria que não é ele quem faz as leis. Então o motorista teria que entrar com recursos, alegando não poder dirigir com déficit de oxigênio no cérebro. E haveria uma perícia especializada em determinar se o diâmetro da catota poderia ou não causar uma obstrução das vias aéreas do cidadão.

Até que o sinal abriu e simplesmente aumentei o volume do meu som, e segui cantando, discretamente, por via das dúvidas. E decidi parar com essa mania de olhar pros lados antes que isso ou algo mais bizarro me contagiasse e pudesse me comprometer também.

domingo, 8 de julho de 2012

O metrô


Havia acabado de sair do show do Noel Gallagher em São Paulo. Era meia noite e fazia um frio de 18° na Barra Funda. E a galera ainda eufórica gritava no caminho do metrô: “olé, olé, olé, olé, Noeeel, Noeeel!”. Pegamos o metrô, eu e um casal de amigos. Linha Vermelha. Próxima parada: República. Na República, me despedi dos meus amigos para fazer a baldeação com a Linha Amarela. Entrei no trem, me sentei sozinha, aguardando a estação Paulista. Fiquei observando as pessoas ainda comentando sobre o show e no quão incrível havia sido. Havia um rapaz perto da porta, aparentemente de uns 20 e poucos anos, alto, cabelos escuros, com uma grande, porém discreta e linear cicatriz na bochecha esquerda. Fiquei intrigada com o que poderia ter causado aquela cicatriz, e ao mesmo tempo admirei. Pensei “tem cicatrizes que realmente deixam a pessoa charmosa”. Fiquei o observando enquanto conversava com dois amigos sobre o show. “Hum, então ele estava no show...”. Fiquei observando seu jeito, suas feições, e me encantei. Uma daquelas paixõezinhas anônimas platônicas. Um rosto na multidão. Um passante de Baudelaire.

Estação Paulista. Fui andando em direção à saída para pegar o táxi com destino ao local onde estava hospedada, na avenida Rebouças. A estação já estava um pouco deserta e as únicas pessoas que estavam fazendo o mesmo caminho que eu eram três rapazes, entre eles o rapaz desconhecido do trem. Subimos a escada rolante, enquanto um deles subiu pela escada normal. O rapaz da cicatriz prontamente exclamou: “Véi! Por que você está subindo de escada? Você é burro? Vai ter que tomar banho quando chegar em casa!” e estranhamente se virou pra mim (isso mesmo!) e disse “não é?”. Fiquei tão surpresa que mal consegui dizer: “lógico... eu não vou tomar banho agora, você vai?”. E ele respondeu: “só amanhã cedo!”. Então emendei: “vou tomar amanhã tarde, pois pretendo dormir muito!”. Ele riu, dizendo aos amigos “gente, ela é das minhas!”.

Já na avenida Consolação (que é uma continuação da avenida Rebouças, para onde eu estava indo) pensei em pegar um táxi, mas não havia nenhum, e os rapazes estavam indo ao ponto de ônibus. Resolvi acompanhar, pois pensei que alguém que está saindo do show de Noel Gallagher deveria ser, no mínimo, um pouco confiável. O ônibus não demorou nem cinco minutos. Subi, paguei ao cobrador e fui apreensivamente para a saída, pois o meu ponto não ia demorar. Olhei ao redor e para minha (boa) surpresa, o rapaz desconhecido do metrô também estava lá. Ele olhou para mim e acenou com a cabeça, sorrindo. Sorri de volta, com timidez. Até que chegou a minha parada. Olhei novamente para ele, mas ele estava conversando com seu amigo. Desci, e ao esperar o sinal abrir para os pedestres, olhei mais uma vez para dentro do ônibus, na esperança de vê-lo uma última vez. Ele olhava ao redor como se procurasse algo, até que olhou para a calçada e me viu. Ao me ver, sorriu, como quem se despede. Um sorriso de indignação, como quem diz “não nos veremos nunca mais?”. “Não”, pensei. E eu sorri de volta, ainda me contendo da emoção do momento, com um misto de arrependimento por não ter perguntado seu nome, e ao mesmo tempo encantamento pelo anonimato dessa paixão, que nunca se realizará.

”A rua, em torno, era ensurdecedora vaia.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão vaidosa
Erguendo e balançando a barra alva da saia;

Pernas de estátua, era fidalga, ágil e fina.
Eu bebia, como um basbaque extravagante,
No tempestuoso céu do seu olhar distante,
A doçura que encanta e o prazer que assassina.

Brilho... e a noite depois! - Fugitiva beldade
De um olhar que me fez nascer segunda vez,
Não mais te hei de rever senão na eternidade?

Longe daquí! tarde demais! nunca talvez!
Pois não sabes de mim, não sei que fim levaste,
Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste!”

A uma passante, Charles Baudelaire.